Wayner: lição de Perseverança

A trajetória da família que saiu de Delfinópolis com poucos recursos para construir em Franca a história da Freeway tem desventuras, conflitos, obstáculos e batalhas incansáveis enfrentadas por todos os envolvidos. Muito dessa história tem a ver com o espírito guerreiro de Wayner Machado, sócio da Freeway, diretor do Curtume Tropical e responsável, junto com o irmão Jânio Machado, pela fundação do grupo. Engenheiro e membro da diretoria da Fiesp, é Wayner quem conta, na entrevista a seguir, uma parte dessa trajetória tão difícil quanto empolgante.

Way – Como foram os primeiros tempos em seu caminho da escola de engenharia rumo à primeira linha da indústria de calçados?

Wayner – Foram bastante complicados. Quando entrei na Faculdade de Engenharia em Ribeirão Preto, não tinha dinheiro para pagar uma pensão na cidade. A primeira solução foi viajar todo dia para Ribeirão e voltar para almoçar em casa.

Chegava depois das 3 horas da tarde e só então ia almoçar. Mas eu pegava o ônibus aqui cedo, por volta das 6 horas, e acabava sempre perdendo a primeira aula e uma parte da segunda. Pensei então em tentar ir de carona, para ganhar tempo e para diminuir o custo de transporte.

Conseguia também voltar de carona, depois das aulas. Mas tinha outro agravante: precisava de dinheiro para ajudar meu pai a pagar a escola.

Comecei, então, a dar aula no Madurezão, um curso supletivo da época, para ganhar algum dinheiro. No segundo semestre, consegui uma bolsa do governo, o que me aliviou bastante, mas no segundo ano tive que me mudar para Ribeirão porque tudo estava muito difícil e fui procurar uma pensão.

O problema é que logo percebi que teria dificuldade de pagar a hospedagem e só fiquei por um tempo porque a dona da pensão aceitou um gravador como parte do pagamento e porque um colega de pensão sugeriu que eu ficasse no quarto dele, em um colchão, convencendo a proprietária.

Esse colega se transformaria num grande amigo, João Batista de Menezes, hoje médico e professor no Hospital das Clínicas (USP – Ribeirão Preto). Eu tinha então de 19 para 20 anos.

Way – Essa solução foi definitiva neste momento de sua experiência na faculdade?

Wayner – Era só uma saída temporária e conversava muito sobre isso com o Menezes, que me animou a procurar os padres em algum seminário, porque ele mesmo tinha precisado de ajuda certa vez e tinha sido bem recebido.

Encontrei um seminário no Jardim Sumaré e fui pedir ajuda, expondo minha situação, e consegui que o padre que me recebeu, padre Jacó, me hospedasse por mais 15 dias, o que só resolvia meu problema por um tempo, porque também dava um jeito de comer no refeitório. Mas prometi que ia encontrar um emprego para pagar a hospedagem.

Consegui um estágio como revisor no Correio da Manhã, mas logo percebi que não me pagariam nada e, por sorte, vi um anúncio de uma empresa de vidros e decoração que procurava estagiário de engenharia.

Só sei que meu primeiro salário dei integralmente para o padre, cumprindo minha promessa. Mas era difícil conjugar trabalho e escola e logo voltei a ter dificuldade para pagar a faculdade, uma situação dramática.

Acontece que o padre descobriu que eu frequentava a escola e não fazia as provas porque não pagava. Graças ao padre Jacó, que ficou penalizado, pude continuar o curso, porque ele pagou o semestre inteiro da escola para mim.

Estava no segundo ano da faculdade e, para completar a situação, minha namorada ficou grávida.

Agora, além de tudo, tinha que cuidar da vida de mais duas pessoas. Tinha que encontrar uma solução mais definitiva e consegui, com ajuda da família, comprar um terreno em Ribeirão para construir uma casinha para mim e minha mulher, com os conhecimentos que eu tinha de engenharia e um financiamento. Era muito precário, não tínhamos nem chuveiro.

Não sabia de onde vinha tanta energia e coragem para enfrentar essas dificuldades, mas sempre tive convicção de que só com a educação conseguiria seguir adiante. Daí a persistência, com tanto esforço diante de tantas complicações, para concluir a faculdade.

Na minha vida tinha sido muita coisa – fui engraxate ainda garoto, fui cuidador de porcos, sapateiro, fogueteiro.

Nessa história toda, também é bom ressaltar a importância da minha mãe como principal força na estrutura da família. Foi ela que insistiu com o meu pai para vir de Delfinópolis para Franca no fim da década de 1960.

Ela queria Franca e ponto final. Antes de vir para Franca meu pai já fazia sapatos e depois, aqui, procurou as fábricas e pessoas que acreditaram nele sem nunca, antes, ter tido nenhum contato com ele.

Way – Em que momento o rumo de sua vida começou a mudar?

Wayner – Primeiro tive que concluir a faculdade. Vendi aquela casa em construção e fomos morar em uma casa já pronta, já com nossa filha pequena.

Nessa época eu pegava com meu pai em Franca alguns pares de calçado e vendia em Ribeirão, na escola, no posto de gasolina, tudo para completar o orçamento.

Fiz um pouco de capital de giro e fui para a Galeria Pagé, em São Paulo, comprar mais coisas para vender por aqui. Saía daqui na madrugada do sábado e voltava no fim da tarde com uma sacola cheia de calculadoras, óculos, relógios. Mas continuava vendendo sapatos.

Foi isso que garantiu o pagamento da faculdade até a formatura. Com o diploma na mão, fui para São Paulo, por uma semana, e fiz várias tentativas de encontrar trabalho, sem conseguir. Estava decidido a voltar, mas fiz uma última tentativa na Cospen, onde fui recebido pelo João Cheade, que me fez algumas perguntas sobre minhas expectativas.

Cheguei lá às 10 horas e às 10h30 já estava visitando a empresa e mantendo contato com os colegas. Fui contratado no mesmo dia da entrevista, depois de já ter esgotado todas as minhas possibilidades anteriores. Tenho uma gratidão eterna com o João Cheade.

Way – Sua carreira como engenheiro serviu, então, como uma espécie de aperfeiçoamento profissional para a entrada definitiva na indústria de calçados?

Wayner – Como engenheiro e graças a meus conhecimentos anteriores, comecei a ter contato maior com as fábricas de sapato, fazendo projetos para essas fábricas.

A maior parte dos projetos que tinha na empresa era de fábricas de sapatos, reforma, ampliação, adequação dos espaços. Era  uma época de expansão da indústria de calçados, com aumento de exportações. Isso era por volta de 1980/1981, porque fiquei dois anos e meio na Cospen.

Comecei a perceber, então, que era uma área bem interessante naquele momento. Nesse meio tempo, como vinha muito para Franca, no meu tempo livre comecei a dar aula de técnica de construção de estradas, porque tinha minha formação ainda muito viva na cabeça.

Mas não era tão simples largar a engenharia para entrar na indústria, só que todo mundo estava fazendo sapato naquela época em Franca e comecei a buscar alternativas.

Contratei um único funcionário e fiz um sapato chamado dockside, um dos sapatos mais simples que vi na minha vida. Montei essa fábrica, continuei trabalhando como engenheiro e no início não tinha nem vendedor. Era uma produção pequena, de 12 pares de sapato por dia. Fui acumulando aquela produção. Eram sapatos de várias cores, com solas brancas e vermelhas, todos de um mesmo modelo. Até que consegui vender o estoque inteiro, o que me animou a incrementar a produção.

O nome da primeira fábrica era Couroflex. Fui pondo mais dinheiro da fábrica, que foi crescendo de forma consistente. Quando já fabricava cerca de 200 pares por dia pensei que estava mais do que na hora de melhorar a qualidade do meu sapato.

Foi quando fiquei sabendo que tinha uma fábrica em Franca que se chamava Freeway.

Way – A aproximação com a Freeway significou uma mudança de parâmetros em sua carreira na indústria?

Wayner – A Freeway fabricava o melhor dockside do mercado. Tive uma empatia imediata com esse nome, essa marca, e tive a certeza de que um dia a fábrica seria minha.

Procurei a direção da Freeway para oferecer os serviços da minha fábrica e comecei a produzir para eles, que tinham muita demanda, o que em consequência aumentou o volume de nossa fabricação.

Mas eles tinham um problema grave de desorganização na administração, de má gestão, e a fábrica quebrou com um prejuízo alto, o que também afetou a nossa participação. E depois teve o incêndio nas instalações, complicando a situação ainda mais, o que fez o produto praticamente desaparecer do mercado.

Uns dois anos mais tarde, meu irmão Jânio (Jânio Machado, hoje presidente da Freeway) já tinha vindo para cá, de Pouso Alegre, e tínhamos uma fábrica chamada TWA. Nessa época já fazíamos até mil pares de sapato por dia, porque tínhamos expandido com rapidez. Foi quando o dono da Freeway me procurou para vender a marca. Me pediu na época 150 mil (dólares), mas eu ainda tinha um prejuízo de 120 mil com ele e ofereci 30 mil em troca da marca. Ele aceitou.

Deu trabalho recuperar a imagem da marca, o Jânio cuidou disso depois do tempo e experiência que adquiriu na TWA. Foi uma fase também em que a engenharia me deu muito dinheiro, nos vários projetos que peguei aqui em Franca e que permitiram que estivesse em contato permanente com o mercado de construção industrial.

Graças a esses contatos, pouco depois comprei o terreno para construir o Curtume Tropical, um sonho antigo em um ramo que dá muito trabalho. Comprei as primeiras máquinas com dificuldade, pagando parcelas a longo prazo com a produção da fábrica.

Way – Olhando para trás, em função de tantos obstáculos, quais as principais virtudes que impulsionaram suas realizações?

Wayner – Todas as dificuldades que passei no início, e mesmo depois que comecei a fazer os investimentos, me fizeram acreditar que não existe força maior que sua própria determinação.

É a vontade de fazer que dá uma força impressionante para transpor tantos obstáculos. Isso leva você a pensar em tudo, menos em desistir. E outra coisa que ajuda muito é a humildade. Muitas vezes eu tive que me conter um pouco, não para recuar, mas para refletir e fazer ajustes.

Também preciso destacar a importância do Jânio nisso tudo, e não só no trabalho. Desde a infância, ele aprendia as coisas com facilidade, e sempre teve carisma. Na fábrica, é humanamente impossível você tomar conta de tudo e o Jânio teve participação fundamental desde o início. Até hoje ele trabalha todo o tempo, mesmo nas horas de descanso ele está pensando no que fazer, tomando providências.

A Freeway, hoje, não existiria se não tivesse a participação do Jânio, do ponto de vista empresarial, administrativo e familiar. É claro que temos momentos de discordância, o que faz parte até da dinâmica de crescimento da empresa, mas essa relação de confiança dá segurança para o negócio seguir adiante, até mesmo para a resolução de possíveis conflitos internos.

Way – E as perspectivas diante das dificuldades dos novos tempos?

Wayner – Hoje, do ponto vista empresarial, é difícil prever o futuro, as coisas nesse ambiente mudam constantemente, fatos novos surgem todos os dias.

Mas o que pretendemos dentro de nossa estrutura e com o apoio familiar em todas as instâncias da empresa é garantir alguma segurança para as gerações que virão. É o que queremos deixar para nossos filhos, que, mais tarde, vão eles mesmos decidir que rumos tomar, sem a nossa interferência.

Muita gente, e não somente familiares, depende dessa nossa estrutura, funcionários que tiveram dentro da empresa um crescimento muito grande. É essa segurança que queremos dar a todos na Freeway.

Por isso que, quando olho na minha linha do tempo e vejo tudo por que passei, posso dizer que tenho minha alma pacificada, não me arrependo de nada. O meu trabalho hoje é contribuir para as pessoas que estão vindo por aí, o que me deixa muito feliz.

Way – Hoje você é um empresário de sonhos e profissão realizadas?

Wayner – Sonhos, sonhos…. realizados, boa pergunta. Posso afirmar com certeza que são sonhos continuados, emendados, até parece que não têm fim. É como olhar o amanhecer, o pôr-do- sol, todos são lindos e apaixonantes, quanto mais você os observa, mais você gosta.

Assim é o trabalho que faço, preciso sempre do dia subsequente para aprimorá-lo. Portanto, quero meus sonhos tais como são: bem vivos. É o que me traz a magia do entusiasmo e são tantos que parece que nunca vão terminar. Não posso dizer que meu trabalho está realizado, porque sei que nunca vou terminá-lo.

Way – Como investidor e líder no seu segmento (coureiro-calçadista), que exemplo você considera que as novas gerações devem seguir?

Wayner – Existem duas palavras mágicas. A primeira traz a segurança e confere poder, que é o CONHECIMENTO. E a segunda é o norte, o rumo, a direção pra chegar ou passar por onde você quer, DETERMINAÇÃO. O resto são acessórios que virão com o tempo.

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